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A tragédia da Kiss segundo um forasteiro, por Bruno Hendler

Bruno Hendler é professor de Relações Internacionais na Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)

Em 09/12/2021 às 11:00:00

Em maio de 2019, eu me mudei para Santa Maria (RS) porque tinha passado no concurso para professor da UFSM. Não acredito em destino, então vou chamar de “acaso insistente” o que me trouxe para cá. Cinco anos antes, eu prestara outro concurso para a universidade e fiquei muito perto de passar, mas era jovem demais, tinha concluído apenas o mestrado e fora recém-contratado por uma faculdade de Curitiba. Por tudo isso, fiquei atrás de candidatos mais experientes, mas foi um tremendo aprendizado. Em 2018, na reta final do doutorado e em um contexto social totalmente diferente, prestei outro concurso e por uma série de acasos, coincidências ou, você pode dizer, destino, enfim tinha chegado a minha vez. Após dez anos da formação acadêmica e de trabalho em faculdades particulares, a UFSM seria o lugar de realização do meu projeto de vida: ser professor em uma universidade federal.

Nos primeiros meses após a mudança, eu perguntava para as pessoas daqui sobre o que aconteceu em 27 de janeiro de 2013 na boate Kiss, até o dia em que parei. Em geral, as respostas variavam entre a experiência individual – conhecer alguém que faleceu ou ter decidido não ir à boate naquela noite – e um sentimento coletivo difuso de que a justiça estava em suspenso, o luto coletivo só seria encerrado após o julgamento dos responsáveis pelo incêndio. A conversa sempre esbarrava aí, em como o julgamento era protelado, nunca acontecia. Menos de um ano após a minha chegada na cidade, veio a pandemia – e o Brasil parou na exata semana em que o julgamento começaria: em março de 2020, no centro de eventos da UFSM. O desfecho digno para uma tragédia estava sendo adiado por outra catástrofe que ainda nos aguardava: os mais de 600 mil brasileiros mortos por covid-19, até agora. Duas tragédias evitáveis, pelo menos na escala em que ocorreram, não fosse pela sucessão de erros e crimes que o Poder Judiciário tem o dever de julgar, e depois a História.

Hoje, a cidade está com uma atmosfera peculiar. A vida “normal” pós-pandemia não voltou, eu só vejo meus alunos pela tela do computador, as pessoas ainda conversam de máscara e, para piorar, há essa expectativa de que uma nova variante do covid-19 nos lance a mais uma rodada de isolamento social. Porém, a população local está acompanhando o julgamento. Não é apenas a rádio que transmite o júri ao longo do dia. É a minha vizinha que está com a TV ligada, é a conversa nas ruas, é a transmissão ao vivo em um telão instalado pela Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), na Praça Saldanha Marinho. As ágoras da cidade, isto é, os espaços do debate sobre a coisa pública, a praça, a universidade, o trabalho presencial, nada disso foi retomado plenamente, então a conversa sobre a Kiss está acontecendo ainda em pequenos grupos, restritos a familiares, amigos, vizinhos. Mas a minha impressão é que está acontecendo.

Embora a 200 km do Uruguai e a 300 km da Argentina, com cerca de 300 mil habitantes, Santa Maria é uma pequena cidade de fronteira e espécie de capital do interior do estado. É pequena porque tenho a sensação de estar no lugar onde o Brasil termina, quase não há brasileiros de outros estados e quase todo mundo que conheço já morou em outras cidades, mas sempre dentro do Rio Grande do Sul. É diferente das capitais onde morei, como Curitiba, que tem laços fortes com São Paulo e o litoral norte de Santa Catarina; Brasília, uma identidade meio goiana, meio nordestina; ou o Rio de Janeiro, que recebe gente do país inteiro, o tempo todo. Não, Santa Maria é essencialmente uma cidade de gaúchos, sejam eles descendentes de italianos e alemães do norte do estado, sejam de portugueses, espanhóis, indígenas e negros do centro-sul. Há poucas referências de fora, de Santa Catarina ou dos países vizinhos. Talvez você encontre a explicação para isso na formação do Rio Grande do Sul desde os tempos de Brasil Colônia e Império e há muita literatura sobre o assunto. Para quem é de fora e já morou em cidades grandes, admito que demora até se acostumar.

Cruzes simbolizam os 242 óbitos da boate Kiss. em Santa Maria (RS): cidade é, na opinião do articulista, "a capital do interior gaúcho"

Por outro lado, Santa Maria recebe gente de todas as partes do estado, e a economia gira em torno do serviço público. Por sua localização estratégica, logo que cheguei, ouvi a frase, tão repetida, de que “temos o segundo maior efetivo militar do Brasil, atrás apenas do Rio de Janeiro”. Já para outro pessoal, o maior motivo de orgulho é a própria UFSM, cuja “marca” também ouço com frequência nesses dois anos e meio: a primeira universidade federal fora de uma capital, fundada em 1960. Graças ao SISU e às ações afirmativas, a “bolha” universitária dá um ar mais plural à cidade, recebendo jovens de todos os cantos e sotaques, embora haja uma predominância de estudantes de Santa Maria e dos municípios vizinhos – tanto na UFSM quanto nas muitas faculdades particulares. E claro, há uma infinidade de advogados, médicos, psicólogos, empresários e outros profissionais urbanos que dão vida ao cotidiano de Santa Maria – e talvez a principal diferença para as grandes capitais seja o maior peso relativo dos produtores rurais e, por consequência, do destaque em pesquisa e formação de profissionais de zootecnia, agronomia e ciências rurais em geral.

Antes da tragédia da Kiss, eu suspeito que Santa Maria já fosse a capital do interior, universitária e cheia de gaúchos. Por isso, acho que a dor da perda se capilarizou pelo estado, atingindo famílias dos arredores, cujos filhos vinham estudar aqui. Mas ninguém abordou de forma tão respeitosa e profunda a dor dessas pessoas como a jornalista Daniela Arbex – forasteira como eu, afinal é mineira de Juiz de Fora –, no livro “Todo dia a mesma noite”. Inclusive, li a obra alguns meses antes de me mudar e acho que todos que me perguntam sobre a boate Kiss, quando digo que moro aqui, deveriam ler.

Assim como o número colossal de mortos na pandemia, a tragédia da Kiss não parece ter sido uma fatalidade. Quando, não raro, um prédio desaba no Rio de Janeiro, a responsabilidade não é apenas de quem quebrou uma parede para fazer uma reforma sem consultar um engenheiro, mas de todo um encadeamento de ações que edificaram aquela estrutura frágil e cheia de falhas. A culpa do desabamento não é da lei da gravidade, a culpa do incêndio não é do oxigênio que alimenta o fogo e a culpa de 600 mil mortos não é puramente do vírus. Não cabe a mim julgar culpas e responsabilidades, mas minha impressão é que Santa Maria precisava deste julgamento, qualquer que seja o desfecho.

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